O barulho do sol, ao se pôr no Pacífico....



segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Menina Menina

Ela era uma menina engraçada. Não tinha teto, não tinha nada. 
Dizia que a sua casa era onde estivesse e tinha uma inseparável sacola azul com enormes alças amarelas. Estava quase sempre com a mesma roupa, o mesmo sapato, despeito da sacola cheia. 
Lia livros de sebo que trocava depois de lido. Andava sempre com um livro só, mas fazia muitas referências. Não tinha computador, nem email, nem celular. 
Se sua casa era onde estivesse, a sua família era quem por ventura se encontrasse ao seu lado.
E amava a todos como se família fossem.
Ela já estava ali há um tempo, o que aumentava o nosso medo de perdê-la.
De vez em quando, a menina olhava para as estrelas e estreitava seus enormes olhos castanhos como se calculasse. Nesses momentos, uma curiosa brisa do norte passava breve levantando as folhas do chão.
Seu cabelo nunca bagunçava, a despeito do travesseiro, da chuva e vento. Era negro e espesso e tinha cheiro de tangerina com cravo.

Certo dia, voltava do mercado com uma lata de sardinha, duas maças e um mate. Fazia um sol cinza e calado.
No cruzamento, um ônibus e um velho monza tinto se encontraram. Ninguém morreu, mas uma grávida escoando sangue foi levada às pressas para o hospital, junto com uma velha senhora de sorisso oco que quebrara a bacia. Esta, não tinha família mesmo.
A menina chorou dois dias e três noites. Falava muito enquanto chorava, mas nada que pudéssemos entender. Não por causa do choro, mas pela nossa limitada compreensão do que são as palavras.
Nesses dias, usou uma capa preta que nunca tínhamos visto antes. E a sacola continuava cheia.
Pensávamos que ela ia embora. A vizinha assou torta de maça, para lhe fazer uma agrado. Dizíamos que a vida era assim mesmo. Ela soluçava, balançava a cabeça e chorava mais.
Ao final das águas, sumiu a capa preta e os olhos voltaram a ser grandes. Mas ficou muda mais dois dias e uma noite.
Por fim, disse - Será que o Mundo pode ouvir o som desesperado dos que se calam? E não se ouviu resposta, nem nossa, nem dela.
No dia seguinte, a menina engraçada já estava em outra casa, sem teto, sem nada.
Deixou na porta um desenho em carvão das estrelas.
Nunca mais voltou.

Até hoje, quando uma silente brisa do norte levanta as folhas, me vem uma saudade azul de alguma coisa que não sei bem o que é.
E tomo chá, de tangerina com cravo.




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